*Cristiano Oliveira – Em 1º de fevereiro de 2024, a Resolução 5.118 do Conselho Monetário Nacional trouxe mudanças substanciais nas regulamentações que regem o mercado de crédito rural privado do Brasil, pegando muitos participantes do mercado desprevenidos. À medida que as partes interessadas no setor do crédito rural enfrentam a incerteza em torno destas alterações, torna-se imperativo aprofundar as potenciais consequências destas medidas. Assim, em vez de focar apenas nas intenções articuladas pelos reguladores, é essencial uma análise abrangente dos seus impactos, ou seja, uma Análise do Impacto Regulatório (AIR), ainda que seja sucinta.
A AIR poderia ter sido realizada pela equipe econômica o Ministério da Fazenda (MF), todavia, o voto apresentado pelo órgão afirma que a AIR nesse caso seria desnecessária, entre outras razões, porque “aprimora a política pública para o desenvolvimento do mercado privado de crédito rural e imobiliário”. O voto ainda argumenta que não haverá custos para os participantes do mercado e não constitui uma mudança substancial da política econômica. Entretanto, estes argumentos merecem um exame mais aprofundado, uma vez que as medidas afetam instrumentos do mercado de crédito que representam 60% do estoque total de crédito rural brasileiro, que atualmente é algo em torno de R$ 1 trilhão.
Antes de realizar este exame, cabe uma breve descrição das medidas e de suas intenções. Entre as medidas que merecem destaque estão: (i) a proibição das emissões de CRAs com lastro em títulos de dívida de emissão de companhias abertas não relacionadas aos setores do agronegócio; (ii) a vedação da emissão de CRAs com lastro em direitos creditórios originados de operações entre partes relacionadas ou de operações financeiras cujos recursos sejam utilizados para reembolso de despesas e; (iii) a vedação da emissão de LCAs com lastro em adiantamentos sobre operação de câmbio, créditos à exportação, inclusive certificados, cédulas ou notas deles representativos, certificados de recebíveis, inclusive CRA, e debêntures.
No que tange as suas intenções, o comunicado feito em conjunto pelo Ministério da Fazenda e o Banco Central afirma que o intuito das alterações era “aumentar a eficiência da política pública no suporte aos setores do agronegócio e imobiliário, assegurando que os referidos instrumentos sejam lastreados em operações compatíveis com as finalidades que justificaram a sua criação e contribuindo para um mercado de crédito mais robusto”. Afirma ainda que: “Os aprimoramentos introduzidos pela nova regulamentação têm por objetivo aumentar a efetividade dessa política, de modo que os recursos captados por meio desses instrumentos financeiros sejam direcionados de forma mais eficiente para o financiamento dos setores do agronegócio e imobiliário”.
De certa forma todas estas medidas e suas intenções apontam em um sentido único que é a restrição ao acesso e a um volume maior de crédito através destes instrumentos. Em outras palavras, criam restrições severas na demanda por crédito. A intenção de ir nessa direção é clara quando se observa que segundo a medida (i) a partir de agora somente empresas que comprovarem possuir 2/3 de sua receita consolidada no agronegócio poderão emitir CRAs. Se por um lado essa medida busca corrigir o que muitos classificam como uma distorção o fato de empresas que tenham uma relação tênue com o agronegócio acessem a este instrumento de crédito (algo que surgiu a partir da decisão do colegiado da CVM em 2016 referendando a emissão de CRAs pelo Burguer King), por outro lado, a resolução cria um critério mais complexo de qualificação, que certamente possui custos maiores de aferição e que possui o potencial de gerar disputas judiciais.
Ademais, as medidas (ii) e (iii) restringem de forma significativa o volume de crédito que poderá ser demandado mesmo por aqueles que, em teoria, estarão qualificados a acessá-los. Um levantamento realizado pelo Clube FII mostra que se as medidas tivessem entrado em vigor no início de 2023, 60,2% das captações de R$ 37 bilhões em CRAs ao longo do ano não se enquadrariam nas novas normas, sendo que cerca de 70% dessas captações que não ocorreriam seriam de empresas que cumpririam a regra de 2/3 para ser considerada do setor, ou seja, o setor deixaria de ter acesso a cerca de R$ 16 bilhões de crédito. O que permite inferir que as medidas implicam em uma redução no volume de crédito privado demandado pelo agronegócio no Brasil.
Conforme a nota, as medidas têm a intenção de direcionar o uso desses instrumentos para quem “eles foram destinados originalmente”. O que em uma primeira análise poderia ser algo bom para os empresários do agronegócio, uma vez que com uma menor demanda e uma oferta de crédito constante seria criada um excesso de oferta capaz de reduzir o custo para se tomar crédito, ou seja, seria possível obter um volume de crédito maior e mais barato do que é atualmente através desses instrumentos. No entanto, não existem garantias de que o volume ofertado de crédito permaneça o mesmo que existe hoje. Aliás, existem algumas razões para acreditar que a oferta seguirá a mesma direção da demanda.
Uma delas é que a perda de diversificação que terá impacto na oferta de recursos. A exclusão de empresas que ostentam fontes de receitas sólidas e que cumprem as suas obrigações não deverá agradar aos investidores, podendo afastar muitos deles devido a estas saídas. A confiança dos investidores também poderá diminuir, enfrentando desafios tanto de curto como de médio prazo. A curto prazo, estas medidas poderão prejudicar a capacidade de muitas empresas refinanciarem as suas dívidas, conduzindo potencialmente a inadimplências com grande visibilidade que poderão dissuadir ainda mais os investidores.
A médio prazo, os investimentos antes considerados seguros e lucrativos poderão a partir de agora ser vistos como mais arriscados, dissuadindo os investidores conservadores e necessitando de prémios mais elevados para compensar os aumentos de risco percebidos. Ambas as questões apontam para um custo mais elevado do crédito para o agronegócio. Assim, com base nesses argumentos, ao contrário do argumento do MF para a isenção do AIR, é implausível garantir que as medidas terão um custo nulo aos participantes. Além disso, outra consequência destas medidas é um retrocesso na democratização do acesso a tais investimentos. É previsível que muitos investidores sejam excluídos do mercado devido à oferta reduzida destes títulos, que atualmente oferecem bons retornos com baixo risco, limitando efetivamente o acesso a grandes investidores.
O fato é que estas medidas em conjunto, apesar de sinalizarem ter boas intenções, trazem muitas consequências não antecipadas pelos reguladores, muitas delas não intencionais e ainda imprevisíveis considerando que se trata de uma mudança abrupta em um mercado que ganhava dinâmica e apresentava ampla expansão. Estas alterações constantes e significativas nas regras do jogo, sempre geram um sério problema de insegurança jurídica, que invariavelmente afasta participantes do mercado.
Afinal, o que garante a eles que novas mudanças relevantes não virão? Incerteza agora é a palavra que está na mente dos atores do mercado de crédito rural privado do Brasil. Incertezas, por exemplo, a respeito das isenções tributárias, dado que hoje essas operações de crédito são isentas de IOF e que há isenção de IR para investidores que são pessoas físicas. Ninguém sabe o que irá acontecer. O que se sabe é que o atual governo busca desesperadamente por novas receitas.
Nesse sentido, essas medidas mostram uma clara intenção do governo em forçar a migração para operações de crédito que são tributadas. Ou seja, pode ser que todas estas mudanças tenham sido motivadas somente pela busca de se arrecadar mais tributos. Talvez, uma intenção menos evidente seja a de direcionar essas demandas para os instrumentos de crédito direcionados pelo Estado.
O que seria uma mudança de política econômica relevante e um retrocesso considerando que: (i) os últimos anos mostraram que é possível haver uma perfeita integração do agronegócio brasileiro com o mercado de capitais; (ii) que não existem recursos suficientes nessas fontes para financiar e expandir o setor e; (iii) que a alocação estatal gera privilégios e não costuma primar pela busca da eficiência. Tomara que essas medidas não levem o agronegócio nesta nova (velha) direção, pois se trata do setor mais dinâmico e bem sucedido da economia e que hoje impulsiona não somente as exportações, mas a economia brasileira.
**Cristiano Oliveira é Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande e Head of Research da Rivool Finance
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Prof. Dr. Ricardo Ralisch: Doutor em agronomia. Professor na Universidade Estadual de Londrina (UEL), pesquisador nas áreas de mecanização agrícola e manejo de solos; diretor da Federação Brasileira de Plantio Direto na Palha; e consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentos e Agricultura (FAO). Ministra também treinamentos em uso racional de equipamentos agrícolas e adequação dos sistemas de produção.
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